Friday

Cinzas.

Acordou com uma leve tristeza à seu lado naquela manhã.
Abriu os olhos, fitou o teto em silêncio. Algo estava estranho dentro dela. Não soube identificar. Olhou o relógio, dez e meia, precisava sair da cama.
Enquanto andava pelos corredores da casa, planejava seu dia: compraria tintas, faria ligações, passaria para dar um beijo em sua mãe, veria um novo apartamenteo, chegaria ao trabalho, provavelmente falaria com algumas pessoas, trabalharia eficientemente e voltaria feliz à casa.

Mas acordou com uma leve tristeza à seu lado naquela manhã.

Na loja de tintas percebeu que algo lhe faltava. Uma sensação de perda descabida para a situação. Um gosto estranho veio à boca. Parecia alumínio, não soube identificar. Sentiu-se tonta, questionou saudades, desconsiderou gravidez, lembrou da noite anterior. "Deve ser o vinho.", pensou.

- Quanto foi?
- Cento e vinte e sete reais, senhora.
- Obrigada.

Desceu sua antiga rua, no seu antigo bairro. Aquele gosto, ainda. Estacionou o carro em sua antiga garagem, sentou-se à mesa, tomou café da manhã, sorriu, contou, beijou a mãe e saiu.

- Chego aí à uma, ok?
- Sim, estarei te esperando. Nós vamos ver o décimo quinto andar, conforme você me solicitou.

Queria voltar ao alto. A vida inteira morou no topo. Mas quando entrou ali, naquele pequeno apartamente de imenso vazio, quis agradecer internanemte por sua casa atual, quis abraçar-se por inteira. Se dar a mão.
Mas havia esquecido que, naquela manhã, quem acordara à seu lado para dar as mãos havia sido uma leve tristeza.

De volta ao carro, fechou apressadamente a porta e o ligou. Queria ligar, e não iria. Queria contar e não havia para quem. Queria dividir e não sabia porque. Queria um abraço e não sabia por quê. Só. Era só um pequenino apartamento. Mas aquela experiência revelou que algo grande parecia morar dentro dela, desde aquela manhã.

A cidade estava tranquila. Seu coração, apressado. Aquele gosto na boca, ainda. Quando chegou ao trabalho, notou que tinha um furo no estômago. Não tinha fome. Não tinha reação. Mas tinha um grande vazio.
Não havia um por quê claro: a noite anterior havia sido extremamente calma e agradável. O dia anterior havia usado para redecorar toda sua casa. Queria o novo. Sua sala. Seus sofás. Seus aconchegos. Tv. Dvds. Caixas. 'Era tão metódico que guardava seus sentimentos em caixinhas.' lembrou da frase inventada por ela mesma.

Quanto mais as horas passavam, mais o gosto acentuava. Arrastou-se à garagem quando o relógio avisou oito da noite. Sua casa. Acendeu as luzes, ligou a Tv, estava orgulhosa daquela mudança.
Mas algo estava do seu lado, ainda. Aquele gosto, ainda. Disfarçando, ainda. Flertou em sms, ligou para a amiga, comeu algo e... nada.
Tentou de tudo. E tudo estava igual.

Alumínio. Amargo. Furo. Uma superfície lisa e sem perspectivas. Morta. Frio. Branco, muito branco.

Era assim que tateava uma descrição sobre o que estava ali dentro.

Foi quando abriu a geladeira e se deu conta.
Entendeu porque acordou com a tristeza à seu lado naquela manhã. Entendeu o gosto amargo. Entendeu o desânimo sem motivos. Entendeu seu olhar acinzentado para seu dia.
Porque tudo fez sentido ao ver o lindo e dourado pote de Geléia de Rosas libanesa.
Rosas. Flores.

Fechou a geladeira. Voltou ao sofá. Desligou a televisão. Respirou fundo.
Silêncio.




Naquela quarta-feira de cinzas, havia vivido um luto muito importante.

Porque nos últimos dias, havia enterrado vocês.

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